Ainda ontem, passei pelo corredor do prédio em tinta fresca e estremeci com um momento déja vu. Eu tinha seis anos quando percebi esse cheiro pela primeira vez. Também era a primeira vez que eu entendia o significado de uma casa própria. "Ué, pai, aqui não vem ninguém pra cobrar o aluguel?" – "Não filhinha, não vem. É a nossa casa". Recordo-me desse aroma inspirador como se fosse ontem. Ele me chamava para o novo. Insinuava o universo de possibilidades apresentadas por aquela casa enorme, com aquele quintal gigante e aquela rua cheia de crianças. A biblioteca, agora, tinha uma sala só pra ela. Os livros brilhavam na prateleira. Eu não via a hora de poder colocar em prática tudo o que havia aprendido naquela lousinha singela, que minha irmã usava na outra casa para me ensinar a ler e a escrever. Até então, apenas esperava ansiosa pelas aulas de recorte e colagem da pré-escola. A professora nos estimulava a escrever apenas o próprio nome, o restante da estratégia era composto por brincadeiras que, mais tarde, fiquei conhecendo como atividades lúdicas. Pedagogia da fantasia, enquanto era muito difícil e nada atrativo entender o mundo que nos esperava. Melhor brincar. Desse novo mundo, fui chegando perto lá pela sexta série. "Você nunca ficou com ninguém? Boca-virgem? Não sabe o que está perdendo". Na verdade, eu estava mais preocupada em aprender a fatorar e a terminar de ler os livros que eu havia emprestado na biblioteca. O prazo para devolução estava acabando. E o tempo passava. E quanto mais o tempo passava, mais eu me sentia estranha por não me interessar pelos meninos desinteressantes da escola. De todos, apontei o menos pior e disse: gosto desse. Só pra me sentir menos deslocada dentro de mim mesma. Eis que veio o primeiro amor. Sensação diferente. Durou uns quatro dias. Foi o coração que escolheu. Mais tarde, a razão mostrou que o menino era tão desinteressante quanto os outros. E daí nasceu a expressão "coração burro da porra". Que se repetiu infinitas vezes, por períodos variados. Amores platônicos, amores quase possíveis e os plenamente possíveis, que costumam durar mais e fazer um estrago maior. Mas o começo é sempre o começo. Uma delícia. Aí você conclui: não parece uma tremenda idiotice comparar o tempo que eu gastei lendo com o tempo que as minhas amigas gastaram beijando na boca, como a leitura indicasse superioridade? Pois bem. Metade delas virou mãe solteira ou se (enterrou) casou antes dos 20,ou poucos anos depois. A outra metade está mais ou menos como eu. Mas são meninas que beijaram mais do que eu. Isso quer dizer que viveram mais a juventude do que eu. E também pode significar que carregam mais feridas do que eu. Por outro lado, poucas, ou nenhuma, podem ter provado a sensação do primeiro beijo mágico, com intensidade mútua, que virou paixão, se tornou amor e que... bem, acabou na merda. Tudo bem, sem lamentações. O cheiro do primeiro beijo se repetiu pouco tempo depois, em uma nova paixão que também acabou... E vai continuar se repetindo, quantas vezes forem necessárias. Portanto, não vamos comparar. Todas nós estávamos buscando a felicidade. Nos livros, nas bocas, nos recortes e colagens, nos quebra-cabeças da existência. O que não vivi ontem me permitiu viver o que vivi hoje. A negação traz a possibilidade. A inexperiência leva à experiência. Viver implica se arriscar. Para o sim ou para o não, haverá conseqüência. Haverá mais vida. Para quem beijou muito ou pouco, chega o tempo da responsabilidade. Trabalhar, estudar de verdade, se engajar em um projeto social, construir seu círculo de amigos, cuidar da família. Aturar chefe estressado, aturar professor mal amado, aturar a si mesmo - a parte mais difícil. Porque ser responsável implica estar o tempo todo com pessoas que te fazem encontrar o melhor e pior de você mesmo. Daí, ser desobediente pode te conduzir a uma grande tragédia. Ser obediente, também. A palavra responsabilidade vem de "resposta". Sim e não. Tudo depende de você. Pressão demais. O sim é mais fácil... você vai lá e compra o que a infância sonhou. Se afoga em dívidas. Estoura todos os seus cartões de crédito. Tenta superar as privações de uma juventude inteira com alguns salários que mais parecem prêmios da loteria. Afinal, você nunca teve tanto dinheiro nas mãos. Parece que, depois de se ferrar tanto, o sucesso chegou. E ele vai parar no SPC em poucos meses. Com o sucesso se divertindo lá, você se sente um fracasso. Percebe que tudo precisa ser diferente. E faz diferente. E vê as oportunidades surgindo novamente. Vê, inclusive, que o fracasso não foi fracasso. Que realizar os sonhos, ainda que pequenos, continua valendo a pena. Mas entende que não vale a pena trocar a felicidade em doses homeopáticas pelo prazer orgásmico de uma única vez. Até porque, depois que passa, a gente sempre pensa: "Foi só isso?" Sim... é tudo tão rápido... sempre... Boa mesmo é a alegria que vem devagar. Já não há mais casa própria. Mas o aluguel é pago pelo internet banking. Já não há mais amor. O emprego é diferente. A cabeça é diferente. A experiência e a inexperiência caminham lado a lado. Há mais amigos de qualidade... Há mais entendimento do que seja o amor. A idealização e a decepção continuam amigas para combater o inimigo comum da realidade. Ou seja, as três continuam existindo e convivendo com a nossa alma. No fim da batalha, só existe uma opção: recomeçar. Então pare e sinta... nunca se esqueça do cheiro da tinta. A guerra continua.
Há 14 anos